Era solitária. Esquecida.
Escarrava onde os diversos passos alheios iam e vinham sem um sequer notá-la. E com os olhos sangrando raiva, escarrava com toda força que ainda restava em seus pulmões.
Era sagrado. Todos os dias sentava-se à frente de sua cabana, e ali, enquanto mascava fumo cuidava todos os gestos, os olhares, e as conversas daqueles que nem de revesgueio a olhavam. E escarrava com mais raiva ainda. Sagrado também eram os três pãezinhos fresquinhos que lhe chegavam - quando o sol lentamente retirava-se de cena - por meio da jovem Eulália, a filha mais moça do padeiro Bento.
Doce e sempre muito gentil, Eulália, profundamente caridosa, sentia dor ao ver tal senhorinha sem o quê comer, beber e até mesmo o que vestir. E mansamente se achegava. Estendia seus longos e morenos braços queimados do sol sertanejo e ofertava à senhorinha seus pãezinhos novinhos juntos de um sorriso doce e puro, tal como seus treze anos.
- Joga ali na mesa - era o que Eulália sempre ouvira. Sorria mesmo assim, e partia serelepe rumando à padaria. Nessas vezes, por esses passos sinceros, a velha não escarrava, jogava sempre um pouco de pinga onde a poeira, que levantavam dos pés borboleantes de Eulália, seguiam-na de rastro, e só então, quando sumiam de suas vistas, amargamente só, se recolhia.
Todos os dias a mesma velhice, e a mesma ternura infantil cruzam olhares de afeto. Mesmo que os anos calejados da senhorinha não lhe permitissem tal ternura, no seu íntimo, ainda lhe restava um tantinho de carinho, quase imperceptível, quase como a lembrança antiga de uma pele ainda lisinha, sem rugas nem manchas. No entanto, o imperceptível aos olhos alheios, era sentido pelo bondoso coração de Eulália - que, inocente, sentia amor por todas as pessoas.
Certa vez, a pequena saltitava contente em direção a cabana com seus três sagrados pãezinhos. Assustada, derrapou na areia. Olhou para os lados e, de um, só avistava a poeira vinda de rastro e o sol sufocante torrando-lhe as vistas do outro. Sentiu seu coraçãozinho paralisar de medo. Abriu vagarosamente a porta tosca que sempre range anunciando a chegada de alguém.
E em um pequeníssimo cômodo, ao fundo dele já sem qualquer iluminação, ao chão em uma esponja fininha e surrada estava a senhorinha, coberta por trapos encardidos, resmungava de dor, enquanto de sua testa o suor encharcava outro pedaço de esponja que se passava agora por travesseiro.
Piedosa, Eulália largou os pãezinhos sob à mesa, e ajoelhou-se ao lado da coitadinha que batia de frio os únicos dois dentes que lhe restavam.
Num sobressalto, a pequena procurou por uma toalha, ou qualquer pedaço de pano que fosse, que logo fora molhada e suavemente a repousou sob expressiva testa enferma.
Sem esperar, a velha abriu os olhos caídos e pesados, e com a boca seca e sem cor lhe disse:
- Minha jovi, agredicida pela bondadi de seu coração. A pequena cuidou tanto deu, que lhe devu agradicer pur isso.
Tossiu tuberculosa, e voltou a falar:
- Tomi pra ocê essi colar. Foi di minha mainha e agora quero qui fique cum cê. Vali muiti pra eu, minha quirida. Guarde cum cê pá sempri.
Tossiu e escarrou novamente e, enfim, sua respiração fora silenciada.
Chorosa, a pequena Eulália contornou seu pescoço com o colar, fechou com carinho e compaixão os olhos tristes daquela amarga velhinha, e antes de sair, acendeu uma vela pedindo aos anjos que lhe tivessem piedade e consigo, carregassem aquele corpo cansado de tanta dor e trabalho. E que assim, a perdoassem por tanta velhice seca.
- Tomi pra ocê essi colar. Foi di minha mainha e agora quero qui fique cum cê. Vali muiti pra eu, minha quirida. Guarde cum cê pá sempri.
Tossiu e escarrou novamente e, enfim, sua respiração fora silenciada.
Chorosa, a pequena Eulália contornou seu pescoço com o colar, fechou com carinho e compaixão os olhos tristes daquela amarga velhinha, e antes de sair, acendeu uma vela pedindo aos anjos que lhe tivessem piedade e consigo, carregassem aquele corpo cansado de tanta dor e trabalho. E que assim, a perdoassem por tanta velhice seca.
Com as mãos sujas de terra, enxugou suas lágrimas e bateu a porta tendo em seu coração que Deus, O misericordioso que ouvira na missa passada, tivesse piedade do azedume de suas rugas e que ela tivesse paz.
Pelo menos dessa vez.