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- O que escrevo? Não sei. Só sei que minha alma grita e eu já não posso mais abafar nem conter essa ânsia.

domingo, abril 11, 2010

Domingo no Sertão

Para alguns, domingo tem cheiro de preguiça, de um descanso exagerado. Para mim, domingo tem cheiro de saudade, de uma melancolia, que torcendo muito, só se arrasta até a próxima quinta-feira. Lembro-me de que na meninice o domingo era sempre o dia mais esperado na semana. A casa cheia, comida em excesso cozinhando no fogão à lenha, crianças correndo soltas pelos cantos da casa – meus nove irmãos -, vizinhas trocando receitas de fim de semana, o cheiro do feijão na panela de ferro e o cheiro do fumo misturado a uma colônia forte de menta que papai usava.
Domingo tem cheiro de bagunça, de risadas altas, de família reunida - de brigas. Mas em casa, na hora do almoço, papai rogava aos céus em silêncio uma prece que só ele sabia de cor, mamãe fechava os olhos, submissa, e compadecia-se sei lá bem com o quê. O silêncio era o nosso companheiro na hora das refeições. Seu Nicanor não permitia um ruído sequer, dizia que aquele momento deveria ser preservado, aproveitado e admirado em silêncio. Comida era sagrada lá na nossa choça. Podia faltar o que fosse, podíamos não ter mais velas nem pilha para ouvir no rádio as tragédias de nosso sofrido Sertão, mas papai não deixava que nos faltasse uma refeição que fosse. Mesa comprida ocupava praticamente todo o espaço da sala, e ali ficavam as comidas bem feitas, bem temperadas e cozidas por minha mãe, Sebastiana.
Domingo tem cheiro de feijoada, tem cheiro de silêncio, tem melancolia, tem saudades de minha terra querida.
            Depois do almoço os filhos mais velhos ajudavam a mãe com as louças, enquanto os outros se distraíam brincando na rede no lado de fora. Eu não ajudava nem brincava. Era a quinta filha, o quinto degrau dos irmãos. Não era velha o suficiente para lidar com a louça nem nova o bastante para brincar na rede. Sentava-me no degrau da porta e observava, mais a frente, meu velho Nicanor postado em sua cadeira de balanço com o olhar fixo não sei onde, as mãos cruzadas sobre o peito magro, porém forte, e no canto da boca o fumo apagado, seu enfeite, sua única regalia, sua única extravagância.
            Quando a cozinha já estava impecável, mamãe não descansava, contudo. Varria a frente da casa, aquele piso sem cor, gelado que cheio de areia a irritava. Papai fingia nem perceber sua inquietude, pigarreava a garganta e mais fixo ainda penetrava seu olhar passando a cerca, passando as árvores que ainda restavam, passando as nuvens, passando o horizonte.
            Domingo. Ah, os domingos de meu Sertão. Ainda sinto o cheiro do fumo molhado, do feijão cozinhando na panela de pressão, da lavanda de seu Nicanor, do silêncio. Oração sem pressa que nos conduzira durante tanto tempo a uma mesa farta, a um carinho sem apego nem afago mas sentido dentro de nossos corações. Ah, meu Sertão de tantas mazelas e sofreguidão. De tanta seca e insolação. De tanto cheiro de amor, cheiro de domingo de fé, cheiro da saudade de um tempo que nunca mais voltou. Ah, meu Sertão.