Quem sou eu

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- O que escrevo? Não sei. Só sei que minha alma grita e eu já não posso mais abafar nem conter essa ânsia.

terça-feira, março 22, 2011

Amor

Outro dia, ouvi uns gritos. Gritos de socorro, de desespero e dor. Larguei o que estava fazendo e saí em disparada, tropeçando nos móveis no meio da sala. Cheguei na porta de seu quarto e ele continuava gritando, já com a voz quase abafada, como se alguém o sufocasse. Implorava para que esse monstro terrível parasse de atormentá-lo, de sufocá-lo. Percebi que estava sendo sufocado pelas mãos trêmulas que tentavam tirar qualquer coisa que envolvesse seu pescoço.
Assustada, acendi a luz. Como se com a luz acesa todo o pavor fosse embora, dando lugar somente  para a paz e para a tranquilidade.  

Em seguida, ele abriu os olhos. Num passe de mágica, o quarto iluminado trouxe-o de volta para sua realidade. Estava com os olhos arregalados, o peito subia e descia bruscamente, mãos e pernas agitadas  - lembro-me do pavor que senti, do medo que abraçou-me por trás arrepiando minha nuca. Contou-me de seu pesadelo, havia, de fato, alguém o sufocando. Estava cansado, parecia que realmente tinha lutado para se manter vivo, sóbrio. Disse-lhe, segurando as lágrimas e as mãos frias contra meu peito, disse-lhe que, agora, tudo estava bem novamente e lhe ofereci um sorvete, o qual imediatamente foi devorado.
Os papéis, naquele instante, foram invertidos. Eu precisava manter o controle da situação, afugentar seus medos e receios diante da morte previsível e aterrorizadora. Dei-lhe sorvete como se eu fosse a mãe. Mãe zelosa, mas que subitamente não soube o que fazer a não ser alegrá-lo com o gosto gelado de meu amor. E havia amor ali. Mais do que geralmente cabe em mim.
Respiração controlada, mãos novamente repousadas sobre o corpo enfraquecido. Tudo estava tranquilo outra vez. Mas ao sair ele me disse de olhos fechados: por favor, só não me deixe sozinho, não feche a porta.

E ele não está. Não está. Estarei ali para quando os sonhos intranquilos reaparecerem. Estarei ali com o seu sorvete preferido. Porém, desta vez, espantarei seus monstros com o abraço mais zeloso e reconfortador que há em mim. Nem que seja pela única vez.

Lembranças esquecidas

São lembranças, velhas recordações jogadas no fundo da caixa. Fotos manchadas e rasgadas. Nem bem posso identificar meu rosto nelas - estou diferente desses dias. Sou eu esta de casaco? - não lembro de ter saído do regime. Ou seria esta segurando as flores recebidas em alguma comemoração da qual não lembro? Não, não, eu costumo franzir a testa, esta não sou eu. Definitivamente. Ou será que passei a franzir a testa depois desse dia? Não há data, sequer qualquer informação nesta foto. E nesta, será que há alguma identificação? Também não... O que me espanta, eu costumo assinalar as datas, às vezes, até mesmo a hora. Por que nestas fotos não fiz isso? Não lembro se passei a ter este costume de etiquetar, marcar, assinalar, propriamente carimbar minhas coisas depois deste dia. Não lembro. Vai ver eu preciso realmente fazer essas coisas agora, ando esquecida...

São apenas lembranças pouco revividas... Folhas amareladas, cartas sem remetente não enviadas. Outras cartas sem assinatura - não me lembro delas... esta letra nem é minha... a minha grafia da letra "a" não é completa, fechada como esta. Deixo sempre alguma brecha, vá que eu queira voltar e fazer dela um "ó"? Às vezes, é bom voltar. Voltar para aquilo que se teve... Só se é possível voltar, na verdade, quando algo não está completo, findado pura e cruamente articulado. Há sempre uma sombra deixada no passado, quando ela toma forma e cor nos pensamentos alienados é porque está na hora de voltar. Voltar e terminar com aquilo. Mesmo que para isso seja necessário fazer uma força sobrehumana para lembrar-se do sorriso de outrora. Lembro-me dos planos, esses eu lembro. Tinha muitos. Nada de muito especial ou ousado, só queria um ou dois filhos para cuidar, uma vida tranquila, com minhas obrigações com a arte e o direito de manter a casa limpa e arrumada a espera dos meus filhos e marido ao cair da noite. 

Não lembro o que deu errado. Se é que algo deu errado. Mas, talvez, tenham sido aquelas flores.  Naquele dia. Aquele moço de terno cinza, atrás dela, que acho ser eu, não me parece entusiasmado com o momento. Reconheço aquele queixo furado. Há um certo desconforto em seus ombros, um sorriso sem graça e um olhar perdido em direção a lente que eternizou esse momento por algum motivo. Não me lembro quando. O lugar, a praça  e aqueles bancos, a laranjeira brava, florida em branco... Provavelmente em pleno mês de dezembro, só pode ser em frente  àquela igreja do centro da cidade. Posso até escutar os sinos e aquela música suave de fim de tarde ao fundo.

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O telefone tocou roubando-lhe novamente a atenção. Juntou ligeiramente as velhas lembranças e as colocou de volta na caixa de madeira. Selou a caixa, fechou o cadeado guardando-a no fundo do armário, na prateleira mais alta, do lugar de onde havia tirado. Cobriu-a com os cobertores pesados do frio do extremo sul do país e fechou a porta do armário. O telefone insistentemente toca. Não olhou para trás e fechou a porta atrás de si. Aprumou o vestido bordado e atendeu o telefonema.


Não me lembro de quem nem porquê, exatamente - ainda pensou. Mas há episódios desta vida que devem ser relembrados, revividos. Porém, se a lembrança voltar sem qualquer marca ou pista de quem éramos  ou o motivo daqueles olhos opacos e, ainda assim, um sorriso estampado no papel brilhoso não for recordado é porque, simplesmente, há bons motivos para serem esquecidos. Mesmo que não se recorde o porquê disso. Também é imprescindível considerar.

Desligou o telefone com um sorriso esquecido nos lábios, pegou as chaves de casa e a bolsa e bateu a porta da frente. De volta à rotina.

quinta-feira, março 17, 2011

o crucifixo

Asco: foi o que tentou sentir. Sentiu uma repulsa crescer dentro de si. Um bolo enorme em sua garganta se formava. Sentia nojo de si. Nojo e culpa. Era a sua primeira experiência, seu primeiro contato com aquele tipo de situação. Não se sentia nervosa. Mantinha postura firme. Era firme. Cresceu assim. Desde pequena, algo que parecia nojo lhe corria pelas veias ao invés de sangue. Pele fria, mãos cautelosas e precisas. Também decidida. Ainda menina trocou o azul claro do céu do seu interior pelo tom melancólico do céu da capital. A menina com atitudes de gente grande – todos diziam – foi estudar num colégio de freiras, ela mesma decidiu. Gostava das roupas limpas, cheirando a sabão. Lençóis de sua cama perfeitamente esticados, sem nem ter marca de seus dedos calejados, grossos como os de sua mãe. Igualmente desligada de afetividades, cuidava da casa, do gado, da plantação de arroz: não tinha tempo para criar laços, enraizar ternura; cortava o mal pela raiz, por falar nisso – no próprio ventre. Paria e aquilo era tudo que haviam lhe contado sobre o amor. Uns cuidavam dos outros, a matriarca, essa não, cuidava da casa, do que forrava-lhes o estômago no fim do dia.
A menina cresceu. Talvez até tenha agradecido, do seu jeito, a madre pelos anos em que lhe acolhera. Amor era uma palavra que desde sua chegada ao colégio ouviu dizer, porém, sabia que era diferente das demais meninas - não sentia aquele calor no peito como lhe costumavam narrar, frenéticas e tão tediosas. Asco. E perto de seu sapato excessivamente lustrado, o chão umedeceu. Sua primeira cuspida. Asco e enjôo. Enjôo do quê afinal de contas? Que dedos grossos e calejados eram aqueles que mal conseguiam segurar o terço? Que pretensão era essa em amar? O quê? Como? Uma menina, sou apenas e ainda uma menina. Enojada por ser diferente de suas companheiras de classe e quarto, ou seria por todas serem iguais?; enojada, ria-se assombrada na tentativa de manter esquecida essa dor no estômago que lhe causava arrepios, fazia-lhe ver vultos, ouvir vozes, muitas vozes, as quais as freiras, incluindo a madre, tratavam logo de calar ajoelhando a menina no milho; mergulhando seu corpo enfraquecido, e, no entanto, tão firme, em banho de água benta. Água santificada, destruidora de todo mal, gritavam enquanto, debaixo d’água, a aluninha lutava para respirar.
Ainda que não mantivesse firme o terço em seus dedos, ela cresceu. Cresceu e foi embora. Herdou um pequeno apartamento de uma tia que nem mesmo sabia que existia. A menina, para a tia, era tudo o que de sua família lhe restava, por isso investiu em seus estudos, mas tampouco olhou-lhe nos olhos. De que cores seriam? A quem puxei olhos tão grandes assim? Simplesmente crescera. Descobriu mundos novos, seus mundos; interagia, revela-se firme em momentos de insignificante ternura para consigo própria. Um mundo só seu, que não lhe causa náuseas nem repulsas; onde sorrir era lembrar vagamente das mãos de sua mãe arando a terra, tocando o gado, e ajeitando a coluna curvada com as mãos rudes e argilosas apoiadas a cintura. Era tudo de que se lembrava. Não ouvia as vozes que percorriam a plantação de arroz, as que ouvia não lhe eram familiares, eram sofridas, desesperadas e horripilantes.
Fazia poucos meses que estava trabalhando no hospital público da cidade. Era firme com os pacientes, mas compreendia suas dores e vulnerabilidade. Gentil sem sorrir, de quarto em quarto, andar por andar, rezava o terço em preces sussurradas, dizia amém e partia para o próximo enfermo. Foi assim durante todos os meses em que lá trabalhou. Havia um único quarto em que lhe era difícil entrar, mas que sentia enorme e estranha necessidade de rezar por aquele paciente. Mais do que rezas, queria tocar-lhe nas mãos, beijar seu rosto abatido, mas antes de ter coragem para fazê-lo, encaminhava-se para o quarto seguinte. Todos os dias. Essa era a sua rotina. Como pode um homem de feições tão bonitas e suaves sofrer tanto assim? Cadê seus filhos? Será que tem esposa? Família? Por quê meu coração dispara toda vez que chego ao quarto 547? Por quê as orações para ele me arrancam lágrimas dos olhos? Um misto de felicidade e dor em suas poucas e jovens rugas, iguais as minhas. A dor nos uniu. Provocou-me sentimentos nunca sentidos antes. Provocou-me arrepios e um forte calor nas maçãs do rosto. Havia ligeira aflição em seu rosto, mas quando a ereta jovem entrava no quarto, exalando seu perfume de roupas muito limpas, podia perceber que aquele frágil homem parecia sorrir de satisfação. A jovem, olhando desconfiada para os lados, para que ninguém a visse, sorria ligeiro satisfeita.
Fazia o habitual, rezava o terço e rumava para o quarto seguinte, todos os dias, sem conversar com nenhum paciente, nem trocar olhares com qualquer pessoa que fosse. O que lhe dava a sensação de não ser tão firme como desejava aparentar ser. Não, não era, mas fingia ser.
O último dia daquela semana começou chuvoso. O céu anoiteceu logo pela manhã, as ruas estavam totalmente submersas, não se via carros e quase nem os telhados das casas. Um caos na mórbida capital. A jovem havia feito plantão na noite anterior, por este motivo é que não havia saído do hospital. Passou parte da noite na capela, evocando todos os deuses e santos que sua memória podia lembrar – por que se nunca fui religiosa?, nunca sequer evoquei tantos deuses dessa forma. O que estaria me acontecendo, meu Deus? As vozes que tenho escutado... rezo por elas, rezo por mim, por não parecer louca diante de tanta estranheza que me assombra, mas que não me fere mais. Por que, meu Deus, aquele homem, do qual desconheço seu passado, envolve meu coração em um sentimento tão quente, tão terno... tão... Amor? Seria isto o amor que aquelas mimadas insuportáveis do internato tanto falavam? Seria sentir do meu mais profundo ser, minha alma, o desejo de ver aquele homem tão desconhecido e tão familiar abrir os olhos para mim? Amor... amor...
Era o seu primeiro contato com aquele tipo de situação. Tentou sentir asco, e por mais estranho que isso lhe pareça, não sentiu. Não sentiu como de costume. O bolo na garganta desapareceu como se houvesse, finalmente, posto para fora todos aqueles anos de solidão e clausura de sua alma. Ela não era vítima como podia se imaginar. Era culpada, tão e somente a única culpada por reprimir e confinar os desejos de sua alma. Por transformar ternura em olhares frios e fulminantes. Mas, agora, sem saber como e nem porquê, agora, tudo estava terrivelmente diferente. Terrivelmente bom e diferente – bom não é bem a palavra, posso dizer que a sensação que me invade é, no mínimo, pretensiosa.
A jovem que, agora, mantinha a coluna curvada – igual a sua mãe antes de endireitá-la enquanto cuidava da terra, da horta – entrou muito vagarosamente no quarto 547 e fechou a porta atrás de si. O homem, ainda de olhos fechados, pareceu sentir a menina chegar; todo o seu corpo relaxou. Parada no pé da cama, a quase mulher sentiu seu coração bater apressado, quase queimando e rasgando-lhe o peito. Aproximou-se lentamente: mais e mais e mais perto da cama. Sabia da gravidade da doença daquele homem, sabia que lhe restavam poucos dias, senão horas para a sua partida para a vida eterna e, talvez, seja este o motivo de toda a sua comoção. Nunca vira alguém naquele estado. O nojo era apenas uma necessidade de fingir que nada sentia, porém, os momentos que passava naquele quarto, ao lado daquele homem de pele acinzentada e ainda com poucas rugas, apesar de agora parecer dez anos mais velho do que é, a fez querer não mais sair dali. A fez passar horas e horas rondando aquele andar; passando a todo instante pela porta do quarto; afligindo-se a cada vez que as enfermeiras corriam urgentes até lá. Aquele momento, no qual estava parada, agora, de pé ao lado da cama, era único. Nunca ficara tão próxima de alguém como desta vez. Nunca, em toda sua invisível existência, nunca importou-se tanto com alguém como se importava com aquele homem que lhe era desconhecido, mas tão, tão próximo... tão... seu.
Agarrou com força o seu terço e iniciou as evocações. Com estranha ternura e compaixão, rezou por aquele homem durante cinco horas seguidas, sendo interrompida somente por um movimento que ele fez.  O homem, praticamente entregue ao abandono familiar – se é que tinha alguém -, abriu rapidamente os olhos e encontrou com os da menina. Outra vez menina: com feições, surpresa, espanto, dor, felicidade e inocência de uma menina. Manteve seus olhos parados, fixos no semblante do enfermo, que podendo finalmente conhecer quem era dona daquele cheiro de roupas limpas, e que sussurrava orações tão envolvidas pela alma e pelo amor puro, o enfermo sorriu e com sofrida dificuldade, estendeu-lhe a mão magra e trêmula. Com profunda estranheza, dessa vez, pela única e última vez, a jovem crente não hesitou, e num ato apressado e desesperado, com as duas mãos envolveu ternamente a do homem. Afagando-lhe carinhosamente e repousando-as em seu peito. Comovido, ambos comovidos, o jovem senhor – agora que podia vê-lo tão de perto, viu o quanto era jovem, o quanto era bonito e tinha feições tão suaves -, o jovem senhor soprou alguma coisa que parecia ser um agradecimento ou qualquer coisa muito parecida com alguma possível gratidão, fechou os olhos. Entre orações em voz alta, quase gritos, suplicas, cruzes e redenções , a jovem beija-lhe o rosto acinzentado mas com aparência tranquila; beija-lhe as mãos; deita-se sobre seu peito e, finalmente, agarra seu terço com força, com toda força que tinha. Com toda força que a fez capaz de esconder-se diante dele, esconder-se de sua própria alma imaculada. 
Colocou o terço em volta do pescoço, enxugou as lágrimas num movimento bruto – como de costume -, lavou exageradamente as mãos. Em momento algum fitou seu rosto no espelho, não queria assustar-se ao ver seus olhos inchados e o novo tom avermelhado que sua pele adquiria. Endireitou a coluna, espantou a poeira de seu vestido como estivesse espanando para longe toda dor e incompreensão de ter se entregado a alguém que nem mesmo sabia o nome, igual as suas colegas de internato, freneticamente sonhadoras e tediosas.  Ajeitou uma mecha de cabelo que havia se soltado do coque e foi avisar as enfermeiras. Resolvida e enojada consigo mesma, partiu para o quarto ao lado dando continuidade a sua rotina. Até o fim.