São lembranças, velhas recordações jogadas no fundo da caixa. Fotos manchadas e rasgadas. Nem bem posso identificar meu rosto nelas - estou diferente desses dias. Sou eu esta de casaco? - não lembro de ter saído do regime. Ou seria esta segurando as flores recebidas em alguma comemoração da qual não lembro? Não, não, eu costumo franzir a testa, esta não sou eu. Definitivamente. Ou será que passei a franzir a testa depois desse dia? Não há data, sequer qualquer informação nesta foto. E nesta, será que há alguma identificação? Também não... O que me espanta, eu costumo assinalar as datas, às vezes, até mesmo a hora. Por que nestas fotos não fiz isso? Não lembro se passei a ter este costume de etiquetar, marcar, assinalar, propriamente carimbar minhas coisas depois deste dia. Não lembro. Vai ver eu preciso realmente fazer essas coisas agora, ando esquecida...
São apenas lembranças pouco revividas... Folhas amareladas, cartas sem remetente não enviadas. Outras cartas sem assinatura - não me lembro delas... esta letra nem é minha... a minha grafia da letra "a" não é completa, fechada como esta. Deixo sempre alguma brecha, vá que eu queira voltar e fazer dela um "ó"? Às vezes, é bom voltar. Voltar para aquilo que se teve... Só se é possível voltar, na verdade, quando algo não está completo, findado pura e cruamente articulado. Há sempre uma sombra deixada no passado, quando ela toma forma e cor nos pensamentos alienados é porque está na hora de voltar. Voltar e terminar com aquilo. Mesmo que para isso seja necessário fazer uma força sobrehumana para lembrar-se do sorriso de outrora. Lembro-me dos planos, esses eu lembro. Tinha muitos. Nada de muito especial ou ousado, só queria um ou dois filhos para cuidar, uma vida tranquila, com minhas obrigações com a arte e o direito de manter a casa limpa e arrumada a espera dos meus filhos e marido ao cair da noite.
Não lembro o que deu errado. Se é que algo deu errado. Mas, talvez, tenham sido aquelas flores. Naquele dia. Aquele moço de terno cinza, atrás dela, que acho ser eu, não me parece entusiasmado com o momento. Reconheço aquele queixo furado. Há um certo desconforto em seus ombros, um sorriso sem graça e um olhar perdido em direção a lente que eternizou esse momento por algum motivo. Não me lembro quando. O lugar, a praça e aqueles bancos, a laranjeira brava, florida em branco... Provavelmente em pleno mês de dezembro, só pode ser em frente àquela igreja do centro da cidade. Posso até escutar os sinos e aquela música suave de fim de tarde ao fundo.
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O telefone tocou roubando-lhe novamente a atenção. Juntou ligeiramente as velhas lembranças e as colocou de volta na caixa de madeira. Selou a caixa, fechou o cadeado guardando-a no fundo do armário, na prateleira mais alta, do lugar de onde havia tirado. Cobriu-a com os cobertores pesados do frio do extremo sul do país e fechou a porta do armário. O telefone insistentemente toca. Não olhou para trás e fechou a porta atrás de si. Aprumou o vestido bordado e atendeu o telefonema.
O telefone tocou roubando-lhe novamente a atenção. Juntou ligeiramente as velhas lembranças e as colocou de volta na caixa de madeira. Selou a caixa, fechou o cadeado guardando-a no fundo do armário, na prateleira mais alta, do lugar de onde havia tirado. Cobriu-a com os cobertores pesados do frio do extremo sul do país e fechou a porta do armário. O telefone insistentemente toca. Não olhou para trás e fechou a porta atrás de si. Aprumou o vestido bordado e atendeu o telefonema.
Não me lembro de quem nem porquê, exatamente - ainda pensou. Mas há episódios desta vida que devem ser relembrados, revividos. Porém, se a lembrança voltar sem qualquer marca ou pista de quem éramos ou o motivo daqueles olhos opacos e, ainda assim, um sorriso estampado no papel brilhoso não for recordado é porque, simplesmente, há bons motivos para serem esquecidos. Mesmo que não se recorde o porquê disso. Também é imprescindível considerar.
Desligou o telefone com um sorriso esquecido nos lábios, pegou as chaves de casa e a bolsa e bateu a porta da frente. De volta à rotina.