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- O que escrevo? Não sei. Só sei que minha alma grita e eu já não posso mais abafar nem conter essa ânsia.

segunda-feira, agosto 01, 2011

O MANTO DESGRAÇADO

 
Ainda sob enfeito do cochilo pós-almoço, espreguiçou o corpo delicado e perfeitamente curvilíneo na varanda de sua cobertura. Debruçou-se sobre a sacada e deixou que o sol invadisse seu corpo sem qualquer rejeição. Sentiu a mão suave do sol por de baixo de sua saia, contornando os joelhos, deslizando sobre as coxas... Assustou-se com o que sentiu. Com as lembranças, o passado, os cabelos negros e tão vivos, de que recordara. Os girassóis que recebera naquela tarde, naquele dia de sol macio da primavera em plena praça, ambas deitadas sobre a toalha amarela, as mãos macias entrelaçadas e o calor que queimava embaixo do jovial vestido rendado..., e... Sentiu vergonha de si mesma, de seu calor. Rapidamente, beijou o crucifixo que servia de pingente para a sua gargantilha de ouro cravejada de minúsculos diamantes. Ganhou o regalo quando se formou na faculdade de Medicina, há quarenta e cinco anos, de sua mãe. Foi o que restara de sua pequena família. 
Ao sentir seus rosados lábios macios, lembrou-se de que não teria a quem repassá-lo. Sou uma solteirona, resmungou. Morava sozinha em sua imensa cobertura de luxo. O apartamento era dos grandes, e tornava-se imenso, de metros quadrados a quilômetros de distância no despertar dos olhos – e da lucidez.
Era, na realidade, uma senhora, embora as curvas de seu corpo não indicassem que o tempo houvera passado para ela – talvez, tenha passado por ela, em companhia da vida. Mas passou – e vai passar para nós também. Os anos pesavam em sua alma, e somente ela poderia medir o peso de sua solidão. E como pesava. Dedicar uma vida inteira, cumprir ao pé da letra o juramento feito em lágrimas há décadas confusas... preencheu uma vida. Preencheu de solidão – pensou. E com os lábios sedosos nunca antes tocados beijou a cruz e o homem que estava pregado nela. Ele também se entregou às pessoas, irmãos que nem mesmo conhecia e teve seu destino. Pregado à cruz. Sozinho e sangrando. Como ela. Não, não que fosse materializada da mesma luz e compaixão incondicional que as dele e seu nome nem era Maria ou Raquel – se bem que poderia ser Dalila ou Marta –, mas simbólica e profeticamente tinha seu destino narrado por lamúrias de sua alma apedrejada, humilhada e crucificada, em orações. Por ela, talvez. Pelo destino, amen.
    Culpava o destino, acomodava-se com ele e explicava a si mesmo em passagens bíblicas e velas acesas a santidades maternais e sofridas o seu sagrado destino. Aqueles rostos esculpidos em nome da fé eram estupidamente melancólicos – pensou sem perceber as lágrimas escorrerem pelo seu rosto.  E tornou a beijar a cruz e o homem seminu. Decidida a conter esses pensamentos demoníacos que não a deixaria cruzar o grande portão, cobriu seus cabelos, esbranquiçados pelo tempo de devoção e submissão, com o manto azul céu de seda e fechou atrás de si a porta de sua cobertura. Tomou o elevador para descer os trinta andares que a mantinha mais próxima do céu e, sentindo-se cada vez mais pecadora, mais desejosa de ter sol de cabelos negros e unhas bem feitas invadir sua saia, acariciar suas belas coxas intocadas e beijar sua alma pura e santificada, atravessou a rua a passos largos e apressados. O manto de seda da cor do céu daquele dia cobria seus brancos e ainda mais o seu colo ironicamente não abençoado. Caminhou o mais depressa possível, subiu as escadarias de joelhos, como em sacrifício e devoção ao santificado nome, e entrou na igreja banhada em lágrimas, suor e desejos forçosamente esquecidos. 
Ficou sentada na primeira fila à espera da missa das 16h30min e ainda faltavam quase três horas para isso. Mas ela não iria se incomodar eu sim, impaciente como tal...
Precisava purificar seus pensamentos repetidas vezes, espantar os demônios que a levava a perdição agarrando-lhe as coxas. Seus demônios, apenas. E sacudia a cabeça, espantando para longe as imagens daquela tarde de girassol e confissões. E aquele peso no corpo, o peso de sua cruz, o sofrimento do homem seminu..., também eram só seus, era essa a sua solidão, ainda que eu, caro leitor, saiba do seu porquê, não posso desviá-la de seu caminho. Não sou seu deus. Embora eu sangre também. Por ela.