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- O que escrevo? Não sei. Só sei que minha alma grita e eu já não posso mais abafar nem conter essa ânsia.

quarta-feira, agosto 03, 2011

UM GOLE DE COCA-COLA


Cresceu sem os pais. Na verdade, muito embora doa na lembrança, Margot admitia não ter pais. Tinha mãe, é claro. Desde sempre sabia que a história da cegonha não se sustentava e, por isso, fazia questão de explicar para as outras crianças de sua idade, no entanto ingênuas, que os bebês nasciam após o contato do pipi do papai com a pepeca da mamãe – era o que sua mãe havia lhe ensinado, e ela testemunhava com seus próprios olhos todas as noites. Algumas, duas vezes com dois homens diferentes juntos. Achava normal. Afinal de contas, ela foi fruto disso. Daquele contato todo suado e de pouco toque. Brutal e animalesco, quase. Mas não era a cegonha, não. Era a mamãe, simplesmente genitora, essa daí.
O pai, como se podia imaginar, não a registrou. Sua mãe nem mesmo fez questão de inventar umas histórias bobas, dessas cinematográficas, foi logo dizendo que não sabia quem era. Eram tantos e muito provável seria nenhum que pudesse se lembrar. Tinha também aqueles, depois dos engradados de cachaça pura e de alguns cigarros - esses que só a fumaça de longe deixava a então pequena Margot vendo pôneis cor-de-rosa brincando de pular cordas nas nuvens. Assim, ela era a menina da sua idade. Fantasiava histórias de amor, com muito choro ao final, mas até com alguns sorrisos, meio bobos, grogues, como se estivesse realmente apaixonada. Como se pudesse saber que aquilo existia e fosse ela capaz de sentir.
Em certa manhã chuvosa, a polícia bateu à porta do pequeno cômodo onde moravam Margot, mãe e a irmã mais velha com algum retardo mental, que a mãe nem tivera o interesse de querer se informar sobre o caso. O policial foi direto: a mãe foi encontrada morta em uma estação de trem do outro lado da cidade. Quase saindo dela, chegando em Boa Vista. Morreu esfaqueada, propriamente, degolada por um travesti que não queria perder seu ponto de drogas e sexo barato e fedido. Foi preso na cena do crime. Por um acaso, um policial fazia ronda naquele local, talvez, não era bem ronda que ele fazia, mas é evidente que isso não constou nos autos. O policial fez algumas perguntas que Margot respondeu com altivez inesperada para sua idade e foi embora em seguida. Fingindo que a menina de destino infeliz estaria segura, ou ao menos amparada. Entrou no carro e cantou pneu. Margot olhava-o, perdida e ao mesmo tempo orgulhosa, através da janela. Sentiu uma lágrima molhar a bochecha direita encardida e jurou para si mesma que isso nunca mais iria acontecer. Nem bem mesmo sabia por que essa lágrima havia escorrido. Simplesmente, a enxugou com o punho encardido de seu casaco. E não pensou mais sobre isso.
Não tinha tempo para pensar naquela lágrima. Cuidou da irmã débil com amor sincero. Dava-lhe banho de água gelada, era só o que tinham, e comida quando algum vizinho trazia sensibilizado pelo desgraçado destino que aquelas almas ainda infantis e já tão sofridas teriam. Ocupava-se de mais com a irmã e em arranjar comida para as duas. Perdeu as contas de quantas vezes precisou deixar de comer para ter o que dar à irmã. E fazia isso sorrindo sem um dente de leite da frente.
Os meses passaram. Margot trabalhava fora. Reconheceu nas ruas alguns dos homens que frequentavam sua casa no tempo em que a mãe era viva e lhe ofereceu alguns serviços - sem nem bem saber o que teria de fazer, de fato. Eles aceitaram, não pensavam nas consequências. Queriam o gozo em troca de algumas moedas e, às vezes, por garrafa pequena de coca-cola, a qual presenteava sua pobre irmã doente que, encantada, sorria com a boca torta e fazia sinal de positivo com o dedo atrofiado e a mão endurecida.
Em um desses encontros de provocar vômitos em Margot - de revirar o estômago de qualquer um com o mínimo de juízo que fosse -, a menina que não aguentaria mais o bolo fofo, o maldito careca chamado Jesus do Santos, que deixava o suor pingar em sua cara com expressão atônita de pavor, esticou o pequeno braço e tateou a grama do mal iluminado Jardim das Acácias, até encontrar o canivete que havia escondido. Sabia que, menos dia, precisaria dele. Enquanto o revoltante balofo revirava os olhos e remexia-se amassando a pequena contra o gramado molhado do sereno, Margot desferiu um golpe certeiro, de canivete, na imensa barriga de seu cliente porcalhão. O canivete precisou ir a fundo. Atravessar aquele amontoado de banha azeda até chegar a algum órgão vital que a menina desconhecia o nome e a existência. Mas foi de uma frieza absurda. Nem ela mesma acreditou no que fizera. E o balofo tombou em cima de seu corpinho infantil. Pesando uma ou talvez duas toneladas. Margot custou para jogá-lo para o lado, mas quando o fez, saiu correndo. Tropeçando na própria coragem que havia, nesse momento, tornado-se medo. Um medo do tamanho do mundo. Pesando duas toneladas como o gordo que sangrava no gramado do jardim sem mover um só dedo, apenas sangrando e suando e fedendo feito porco. Como era. Porco e imundo.
Continuou correndo até que caiu por não mais conseguir suportar aquele peso todo em sua estrutura fraca e esquelética. Caiu feito uma pedra. Uma rocha. Gigante. Como vira na televisão um dia em que foi comer uma torrada em um boteco da esquina. Aquilo fora o seu pagamento do dia. E que ela ficasse contente – dizia outro velho sem dente, quase caducando. Estirada na grama úmida, Margot ficou aos prantos por longos minutos até que pegou no sono. Estava exausta. O corpo em frangalhos. Parecia que tivera sido atropelada por uma multidão ou coisa parecida. Sentiu algo quente em suas costas. Uma água quentinha. Sonhou que tinha gás em casa e que ela e a irmã puderam tomar, pela primeira vez em suas vidas, um banho quente em pleno verão de altas temperaturas nortistas. Acordou com sua própria risada e um cachorro de porte pequeno, desses vira-latas, lambendo sua orelha. Era ele quem havia dado um bom banho de mijo quente em Margot. Que só soube correr, assustada. Chegou ao pequeno cômodo onde morava quando o sol parecia quer sair para o dia enfim nascer. Acordou a irmã carinhosamente, apesar de visivelmente nervosa e apressada, dizendo-lhe que as duas iriam dar um passeio, iriam tomar coca-cola e ver o mar. Sabia que essas duas palavrinhas mágicas, coca-cola e mar, seriam tentadores para a irmã, que só conhecia o mar pela televisão da vizinha que a fazia companhia quando a irmã saia para comprar o refrigerante e só voltava no dia seguinte, esfolada nos braços e rosto.
As duas caminhavam quase que correndo pelas ruas do movimentado centro. A irmã, que nunca vira tanta gente junta antes em toda sua vida, chorava e se debatia de medo. Acalmava-se somente quando a sua protetora dizia as duas palavrinhas mágicas. E rumavam apressadas. Depois de muito andar, entraram no trem da estação mais próxima, a duas horas de sua casa. Porém, precisariam pegar um  ônibus também para chegar onde queriam. O ônibus circulou por mais meia hora até que Margot pediu para um senhor dar o sinal de parada para o motorista. As irmãs desceram exaustas do ônibus. Mas logo abriram um sorriso imenso, nunca visto antes, quando viram que estavam no calçadão, em frente ao mar. Correram pela areia quente e fofinha da praia. Sentiam-se livres. Por um momento: felizes. Dividiram uma garrafa pequena de coca-cola e entram no mar. Estavam felizes e refrescadas. O último gole do refrigerante foi para a irmã mais velha, que tinham os olhos tão iluminados que chegavam a faiscar. Margot estava realizada. Sentia que podia morrer naquele instante. Tinha cumprido seu dever, tinha vivido seu destino. Sorriu para a irmã e disse gentilmente que no fundo do mar havia muitas garrafas de sua bebida preferida, e que era só mergulhar bem, bem fundo que iriam encontrá-las O sorriso e a felicidade eram recíprocos. Mergulharam então.
Até então, o que se sabe que sobrou dessa história foi a garrafa de coca-cola que, com a ressaca de Iemanjá do dia seguinte, voltou para a beira do mar sem as duas irmãs.





Ah!, e antes que você me pergunte sobre o que aconteceu com o bolo fofo eu já lhe digo. O desgraçado foi jogado no necrotério como indigente. Sua carteira havia sido roubada minutos depois do golpe certeiro de canivete. Ninguém deu queixa na polícia sobre o seu sumiço. Morreu sem nome, o canalha. Não o merecia mesmo.