Cresceu sem os pais. Na verdade, muito embora doa na lembrança, Margot admitia não ter pais. Tinha mãe, é claro. Desde sempre sabia que a história da cegonha não se sustentava e, por isso, fazia questão de explicar para as outras crianças de sua idade, no entanto ingênuas, que os bebês nasciam após o contato do pipi do papai com a pepeca da mamãe – era o que sua mãe havia lhe ensinado, e ela testemunhava com seus próprios olhos todas as noites. Algumas, duas vezes com dois homens diferentes juntos. Achava normal. Afinal de contas, ela foi fruto disso. Daquele contato todo suado e de pouco toque. Brutal e animalesco, quase. Mas não era a cegonha, não. Era a mamãe, simplesmente genitora, essa daí.
O
pai, como se podia imaginar, não a registrou. Sua mãe nem mesmo fez questão de
inventar umas histórias bobas, dessas cinematográficas, foi logo dizendo que
não sabia quem era. Eram tantos e muito provável seria nenhum que pudesse se
lembrar. Tinha também aqueles, depois dos engradados de cachaça pura e de
alguns cigarros - esses que só a fumaça de longe deixava a então pequena
Margot vendo pôneis cor-de-rosa brincando de pular cordas nas nuvens. Assim,
ela era a menina da sua idade. Fantasiava histórias de amor, com muito choro ao
final, mas até com alguns sorrisos, meio bobos, grogues, como se estivesse
realmente apaixonada. Como se pudesse saber que aquilo existia e fosse ela capaz de
sentir.
Em
certa manhã chuvosa, a polícia bateu à porta do pequeno cômodo onde moravam
Margot, mãe e a irmã mais velha com algum retardo mental, que a mãe nem tivera o interesse de querer se informar sobre o caso. O policial foi direto: a
mãe foi encontrada morta em uma estação de trem do outro lado da cidade. Quase
saindo dela, chegando em Boa Vista. Morreu esfaqueada, propriamente, degolada por um travesti que não
queria perder seu ponto de drogas e sexo barato e fedido. Foi preso na cena do
crime. Por um acaso, um policial fazia ronda naquele local, talvez, não era bem
ronda que ele fazia, mas é evidente que isso não constou nos autos. O policial
fez algumas perguntas que Margot respondeu com altivez inesperada para sua
idade e foi embora em seguida. Fingindo que a menina de destino infeliz estaria
segura, ou ao menos amparada. Entrou no carro e cantou pneu. Margot olhava-o,
perdida e ao mesmo tempo orgulhosa, através da janela. Sentiu uma lágrima
molhar a bochecha direita encardida e jurou para si mesma que isso nunca mais
iria acontecer. Nem bem mesmo sabia por que essa lágrima havia escorrido.
Simplesmente, a enxugou com o punho encardido de seu casaco. E não pensou mais
sobre isso.
Não
tinha tempo para pensar naquela lágrima. Cuidou da irmã débil com amor sincero.
Dava-lhe banho de água gelada, era só o que tinham, e comida quando algum
vizinho trazia sensibilizado pelo desgraçado destino que aquelas almas ainda
infantis e já tão sofridas teriam. Ocupava-se de mais com a irmã e em arranjar
comida para as duas. Perdeu as contas de quantas vezes precisou deixar de comer
para ter o que dar à irmã. E fazia isso sorrindo sem um dente de leite da frente.
Os
meses passaram. Margot trabalhava fora. Reconheceu nas ruas alguns dos homens
que frequentavam sua casa no tempo em que a mãe era viva e lhe ofereceu alguns
serviços - sem nem bem saber o que teria de fazer, de fato. Eles aceitaram, não
pensavam nas consequências. Queriam o gozo em troca de algumas moedas e, às
vezes, por garrafa pequena de coca-cola,
a qual presenteava sua pobre irmã doente que, encantada, sorria com a boca
torta e fazia sinal de positivo com o dedo atrofiado e a mão endurecida.
Em
um desses encontros de provocar vômitos em Margot - de revirar o estômago de
qualquer um com o mínimo de juízo que fosse -, a menina que não aguentaria mais
o bolo fofo, o maldito careca chamado Jesus do Santos, que deixava o suor pingar em sua cara com expressão
atônita de pavor, esticou o pequeno braço e tateou a grama do mal iluminado
Jardim das Acácias, até encontrar o canivete que havia escondido. Sabia que,
menos dia, precisaria dele. Enquanto o revoltante balofo revirava os olhos e
remexia-se amassando a pequena contra o gramado molhado do sereno, Margot
desferiu um golpe certeiro, de canivete, na imensa barriga de seu cliente
porcalhão. O canivete precisou ir a fundo. Atravessar aquele amontoado de banha
azeda até chegar a algum órgão vital que a menina desconhecia o nome e a
existência. Mas foi de uma frieza absurda. Nem ela mesma acreditou no que
fizera. E o balofo tombou em cima de seu corpinho infantil. Pesando uma ou talvez duas
toneladas. Margot custou para jogá-lo para o lado, mas quando o fez, saiu
correndo. Tropeçando na própria coragem que havia, nesse momento, tornado-se
medo. Um medo do tamanho do mundo. Pesando duas toneladas como o gordo que
sangrava no gramado do jardim sem mover um só dedo, apenas sangrando e suando e
fedendo feito porco. Como era. Porco e imundo.
Continuou
correndo até que caiu por não mais conseguir suportar aquele peso todo em sua
estrutura fraca e esquelética. Caiu feito uma pedra. Uma rocha. Gigante. Como
vira na televisão um dia em que foi comer uma torrada em um boteco da esquina.
Aquilo fora o seu pagamento do dia. E que ela ficasse contente – dizia outro velho
sem dente, quase caducando. Estirada na grama úmida, Margot ficou aos prantos
por longos minutos até que pegou no sono. Estava exausta. O corpo em
frangalhos. Parecia que tivera sido atropelada por uma multidão ou coisa parecida. Sentiu algo
quente em suas costas. Uma água quentinha. Sonhou que tinha gás em casa e que
ela e a irmã puderam tomar, pela primeira vez em suas vidas, um banho quente em
pleno verão de altas temperaturas nortistas. Acordou com sua própria risada e
um cachorro de porte pequeno, desses vira-latas, lambendo sua orelha. Era ele
quem havia dado um bom banho de mijo quente em Margot. Que só soube correr,
assustada. Chegou ao pequeno cômodo onde morava quando o sol parecia quer sair
para o dia enfim nascer. Acordou a irmã carinhosamente, apesar de visivelmente
nervosa e apressada, dizendo-lhe que as duas iriam dar um passeio, iriam tomar coca-cola e ver o mar. Sabia que essas
duas palavrinhas mágicas, coca-cola e mar, seriam tentadores para a irmã, que
só conhecia o mar pela televisão da vizinha que a fazia companhia quando a irmã
saia para comprar o refrigerante e só voltava no dia seguinte, esfolada nos
braços e rosto.
As
duas caminhavam quase que correndo pelas ruas do movimentado centro. A irmã, que
nunca vira tanta gente junta antes em toda sua vida, chorava e se debatia de medo. Acalmava-se
somente quando a sua protetora dizia as duas palavrinhas mágicas. E rumavam
apressadas. Depois de muito andar, entraram no trem da estação mais próxima, a
duas horas de sua casa. Porém, precisariam pegar um ônibus também para chegar onde queriam. O ônibus circulou por mais meia hora até que Margot
pediu para um senhor dar o sinal de parada para o motorista. As irmãs desceram
exaustas do ônibus. Mas logo abriram um sorriso imenso, nunca visto antes,
quando viram que estavam no calçadão, em frente ao mar. Correram pela areia
quente e fofinha da praia. Sentiam-se livres. Por um momento: felizes.
Dividiram uma garrafa pequena de coca-cola
e entram no mar. Estavam felizes e refrescadas. O último gole do
refrigerante foi para a irmã mais velha, que tinham os olhos tão iluminados que
chegavam a faiscar. Margot estava realizada. Sentia que podia morrer naquele
instante. Tinha cumprido seu dever, tinha vivido seu destino. Sorriu para a
irmã e disse gentilmente que no fundo do mar havia muitas garrafas de sua bebida preferida,
e que era só mergulhar bem, bem fundo que iriam encontrá-las O sorriso e a
felicidade eram recíprocos. Mergulharam então.
Até
então, o que se sabe que sobrou dessa história foi a garrafa de coca-cola que, com a ressaca de Iemanjá
do dia seguinte, voltou para a beira do mar sem as duas irmãs.
Ah!, e antes que você me pergunte sobre o que aconteceu com o bolo fofo eu já lhe digo. O desgraçado foi jogado no necrotério como indigente. Sua carteira havia sido roubada minutos depois do golpe certeiro de canivete. Ninguém deu queixa na polícia sobre o seu sumiço. Morreu sem nome, o canalha. Não o merecia mesmo.
Ah!, e antes que você me pergunte sobre o que aconteceu com o bolo fofo eu já lhe digo. O desgraçado foi jogado no necrotério como indigente. Sua carteira havia sido roubada minutos depois do golpe certeiro de canivete. Ninguém deu queixa na polícia sobre o seu sumiço. Morreu sem nome, o canalha. Não o merecia mesmo.