Quebrar uma louça por vontade dos sentimentos alvoroçados provoca sempre
uma sensação de conforto, de um alívio imediato. Visto assim, o lado
positivo exalta-se. E o sorriso, acompanhado por algumas lágrimas de
origens duvidosas, é libertador.
Porém, como de regra,
há sempre o outro lado da moeda. Os tais poréns da vida. O porém de
agora está em limpar os cacos espalhados pelos cantos da cozinha após a
louça repartida em mil pedacinhos miúdos. Você, então, varre. Junta
pedacinho por pedacinho com extremo cuidado para não se cortar. Embrulha
delicadamente o que restou do seu jogo de jantar, herdado da sua
tataravó, em várias folhas
de jornal. Quando segura de que alguém não irá se cortar, o embrulho
está pronto para ser colocado em um saco e despejado na lata do lixo.
Pronto, a cozinha está impecável novamente. Ninguém (mais) irá se
machucar.
Poucas horas depois do
ocorrido, você sente sede e vai até a cozinha de pés descalços, nem
lembrando que sua louça adorada havia se despedaçado ao chão. Bastou o
descuido. Bastou o esquecimento para que você, pega de surpresa e
indignada, enterrasse um mísero fiapo do que restou de vidro em seu pé
desabrigado, para que a dor voltasse a doer profundamente. Incomodando e
ardendo pelos próximos dias.
Assim, acontece com o coração que,
por meio de um delicado processo de restauração e persistência, juntou
seus caquinhos, um a um, tomando o cuidado de não deixar nada pelos
lados tridimensionais da alma. Até que, de repente, você se descuida -
assim como aquela que andou pela cozinha, com os pés desnudos, após ter
quebrado a louça - você se descuida, não presta atenção por onde pisa,
onde quer chegar e o que há em seu caminho e, pronto, um mísero fio de
decepção penetrou profundamente em sua alma, deixando a ardência da
penetração, a
sensação
profunda de inquietação, de corpo estranho..., de marcas e lembranças
somente suas, não visíveis a olho nú, mas perceptíveis no inspirar do
oxigênio para recobrar o fôlego em meio a dor.