Todas
às noites, enquanto o barulho do motor dos carros na rua parecem ter diminuído
o seu ritmo e sua frequência; enquanto estamos sentadas na sala, assistindo ao
telejornal local; enquanto o sol já está adormecido há um bom tempo e em todos
os apartamentos vizinhos só há o som ameno das televisões ligadas; todas às
noites, sentadas, uma ao lado da outra, ela observa minha cicatriz. Observa-a
apertando seus astigmáticos olhos cor-de-mel. Analisa-a como quem ganhou, por
duas vezes consecutivas, o primeiro lugar no assunto “observação e análise diária
de cicatrizes do filho caçula, parte 01”. Examina-a minunciosamente, medindo-a
entre os dedos polegar e indicador como a mesma exatidão de uma costureira
habilidosa que de centímetro a centímetro cosesse seu vestido mais precioso.
Verifica-a como se fosse uma espécie de perita no assunto, cutucando cada ponto
recebido na pele abatida pela falta de sol, como quem a cada toque com o seu
dedo abençoado rezasse de conta em conta ave-maria e pai-nosso com o mesmo fervor
de quem presenciou um milagre e não pode contar para quem quer que seja.
De
oração em oração, diz, ainda com a minha cicatriz entre seus enrugados dedos
polegar e indicar, diz: amanhã estaremos rindo disso tudo – e, dito isso, o
telejornal local passou a ser alvo de nossa atenção outra vez.