viu o primeiro crime
pela tevê
conheceu a cena
viu o corpo estendido
soubera de detalhes
reconstitui os passos
horrorizado com a atrocidade
espiou entre os dedos
não dormiu durante um mês
quando cochilava
tinha pesadelos
viu o quinto homicídio
pela tevê
estava com a mulher
compadecido, chorou baixinho
observou a nova mesma cena
e as marcas de sangue pelo chão
escorrendo do teto
rezou
teve pesadelo numa noite
viu o vigésimo homicídio
pela tevê
acompanhado da mulher
e do primeiro filho
de colo
baixou o volume
e contou uma piada
viu o nonagésimo crime
uma briga de trânsito
alguém buzinou
outro alguém não gostou
saiu do carro
pegou uma 38
com o número de série raspado
desferiu cinco tiros
na mulher que buzinara
ainda nem o cinto havia tirado
viu o crime
pela tevê
foi ao banheiro
e lavou as mãos
alisou a barba refletida no espelho
lavou novamente as mãos e jantou
em frente a tevê
as marcas de sangue
no vidro do carro
na tevê
a vítima cinco vezes furada
aquela que houvera buzinado
para um cachorro desatento
sair do meio da rua
o assassino com a arma na mão
o 38 com o número de série raspado
o assassino consciente da impunidade
achando fazer justiça
crendo estar certo
o porte de arma
o sangue no vidro
a vítima cinco vezes furada
dois na cabeça
dois no abdômen
um no coração
perfurou o pulmão
perfurou o banco
parou o trânsito
a vida banalizada
esvaída na tevê
o homem de família
com a 38 na mão
no meio da rua
o homem em casa lavou seu prato,
comeu um mousse
de sobremesa
e foi dormir
dormiu feito anjo
a vida banalizada
em casa
na rua
na tevê
arma
troca objeto
muda o objetivo
vira verbo
amar
amar
troca o verbo
muda o objetivo
vira objeto
arma
dessa ninguém esquece
antes de sair de casa
carrega consigo a 38
menos a consciência
que é de tamanho menos 8
menos 38
menos vida
outro esquecimento no jornal da noite